Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.
Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.
Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.
Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.
Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.
Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.
Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.
As vozes
A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta
– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém
Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?
Junto à Água
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre altos prédios,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre altos prédios,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.
[Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio e Alvim, 2011]
3 comentários:
sim, está tudo bem - faz tanto tempo que assim é! estou a esvair-me, talvez, em desesperança, hoje menos ontem mais. este fluxo inquietante que me mantém vivo enquanto choca contra as veias (contra o espaço e contra a memória).
hipnose! ou regressão? - até aonde?
será possível remexer no passado, desviar o véu empoeirado para que o presente se torne mais iluminado e com sentido?
hypnosi(a)s , mesmo sem "as vozes"... sortiu, para já, algum efeito! - quem o poderá ter provocado para que pudesse por mim ser transformado?
não importa... importa que procuro "um sítio onde pousar a cabeça" [pois, sei que sempre] anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando [perscrutando], vagueia".
nu.instante@gmail.com
para quê mexer no passado? tudo o que acontece nas nossas vidas tem um propósito. Certo ou errado serviu para algo.
Erguer a cabeça e seguir em frente! Há sempre fontes onde beber Esperança, Fé, Sabedoria e Fortaleza...
Perseveremos!
creio nisso, querendo crer em mim mesmo que todo o passado não é mais do que um breve somatório de todos os presentes sucessivos, em que todos os mesmos presentes são inscritos precisamente nos seus devidos e respectivos instantes, e que não surgem como uma qualquer predestinação ou destino emanado.
perseveremos, sim!
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