25 fevereiro 2011

sobre a amizade

Palavras amáveis multiplicam os amigos, a linguagem afável atrai muitas
respostas agradáveis.
Procura estar de bem com muitos, mas escolhe para conselheiro um entre mil.

Se queres ter um amigo, põe-no primeiro à prova, não confies nele 

muito depressa.
Com efeito, há amigos de ocasião, que não são fiéis no dia da tribulação.
Há amigo que se torna inimigo, que desvendará as tuas fraquezas, 

para tua vergonha.
Há amigo que só o é para a mesa, e que deixará de o ser no dia da desgraça;

na tua prosperidade mostra-se igual a ti, dirigindo-se com à vontade aos

teus servos;
mas, se te colhe o infortúnio, volta-se contra ti, e oculta-se da tua presença.
Afasta-te daqueles que são teus inimigos, e está alerta com os teus amigos.

Um amigo fiel é uma poderosa protecção; quem o encontrou, descobriu um

tesouro.
Nada se pode comparar a um amigo fiel, e nada se iguala ao seu valor.
Um amigo fiel é um bálsamo de vida; 

os que temem o Senhor acharão tal amigo.
O que teme o Senhor terá também boas amizades, porque o seu amigo será
semelhante a ele. 



[Sirac 6,5-17]


Hoje estou assim, é o que dá ter falado com tantos amigos, mas especialmente, com o meu amigo! Obrigada! 

13 fevereiro 2011

Devaneios do "bom selvagem"

 
 Hoje levei um murro no estômago, daqueles murros que nos lembram que o tempo muda, os rostos mudam, mas tudo continua exactamente na mesma: inquietante, insuficiente, injusto, cinzento.


Num domingo chuvoso, em que a disposição "obriga" ao isolamento, à reflexão, à solidão, sou arrancada a uma rotina confortável para me perder numa zona negra no meu mapa dos arredores de Lisboa. A estação de metro do Sr. Roubado nunca me viu mais perdida.


É numa sala intimista de um centro cultural improvável, que encontro uma amiga a quem desiludi dizendo-lhe que não iria ver a sua peça teatral que com tanta dedicação ajudou a construir. É nessa mesma sala que encontro essa amiga num ritual privado de limpeza, de brincadeira com o sabão, com a espuma; num ritual desconcertante talvez demorado, talvez simbólico, de certeza surpreendente pela fragilidade, pela rápida transformação da água límpida em água suja, do bloco de sabão em partículas, da sujidade em limpeza, da limpeza em sujidade... e é na sequência em que a terra macula a água, em que a água ensopa o papel que emergem os diálogos de "filosofia poética" de um optimista social que no fim da vida, se encontra perante o dilema que lhe nega a teoria: afinal o homem é mau e só na sua solidão se encontra, se reconcilia consigo... mas será que consegue morrer sem inquietação?

Ler Rousseau é sermos transportados para uma utopia filosofal, para um tratado de "dever ser" social que nos reduz à evidência de sermos selvagens a tentar sobreviver numa sociedade sem noção dos significados da triologia: Liberdade, Igualdade e Fraternidade... qualquer uma delas mais esquecida que a outra na sua essência, qualquer uma delas gasta pelo mainstream mediático, vazio de significados mas recheado de "parece bem".


Ver Rousseau, sentido com a intensidade imprimida neste projecto, é sentirmos que as palavras devem ser ditas, sentidas, interpretadas. É lembrarmo-nos que o que sentimos hoje, o que vivemos, já foi sentido, já foi vivido, já foi reflectido... e entretanto, nada foi feito...

Hoje levei um murro no estômago... e dói na alma!
 






«Impressões»
De Mário Trigo | a partir da obra "Os Devaneios do Caminhante" 



 Rousseau isola-se, espera a morte, e dedica os seus últimos dias ao exame minucioso da sua vida. Convida-nos para uma conversa serena, fazendo-nos penetrar na intimidade da sua alma doente. Dá-nos pensamentos, às vezes ampliados até à reflexão filosófica, respeitantes à sua visão da Moral, da Religião tal como ele a vive, revela-nos a sua aversão pela mentira, a sua ideia de Felicidade, seduz-nos com os seus pareceres sobre a solidão, não se esquece de nos testemunhar o seu amor ao próximo…

Vemos um Rousseau descontraído, mas também profundamente melancólico. Reconhece as suas fraquezas, o abandono dos filhos, a sua vontade absoluta de irreverência, que explica pela sua timidez e pela sua necessidade de Liberdade, e protesta veementemente contra o aparente fracasso da sua existência cuja responsabilidade atribui aos seus inimigos…


Encanta-nos com as imagens do seu passado vivido em locais paradisíacos, de que a Ilha de Saint-Pierre é um exemplo, enternece-nos com a lembrança do seu amor com Madame de Warens. Daqui emanam sentimentos luminosos que ele enquadra na sua filosofia de felicidade ligada à bondade original do homem: a felicidade de fazer o bem ao próximo, a felicidade usufruir do nosso ser de acordo com o que a Natureza quis…


Agora isolado dos homens, diz-se um caminhante solitário que procura os seus maiores prazeres no seio da Natureza, ao apaziguamento das suas paisagens variadas, das suas linhas harmoniosas, a perfeição botânica que toca a sua alma de artista e que o fazem ascender para Deus…


Este momento em que Rousseau nos recebe, a vida tal como a vive agora, longe da cultura parisiense, permite-lhe desprender-se dos seus anseios, dos seus desejos mais imediatos que o atiravam irreflectidamente para a acção, e revelar-nos o seu pensamento sistemático em proveito da sua esfera privada onde prevalece a autonomia do seu “eu”; a sua paixão por uma natureza em festa, os seus “devaneios”…


Morre inesperadamente na primavera de 1778, na companhia de Thérèse em Ermenonville e com sessenta e seis anos de idade. Morre assim, inesperadamente … o que acontece na nossa presença! E nós evocamos a Revolução que aconteceu em 1789… no mesmo país da Europa onde viveu Jean-Jacques Rousseau.



Com: Mário Trigo (Rousseau); Carla Dias (Madame Warens) e João Vicente (Louis de Saint-Juste)

12 fevereiro 2011

Francis Cabrel

Depois de um álbum de êxitos de 1977-2007 (L'Essentiel 77-07) recupero Cabrel. Mais um canta-autor francês da "minha década de 80".




Moi je n'étais rien,
Mais voilà qu'aujourd'hui
Je suis le gardien
Du sommeil de ses nuits,
Je l'aime à mourir.

Vous pouvez détruire

Tout ce qu'il vous plaira,
Elle n'aura qu'à ouvrir
L'espace de ses bras
Pour tout reconstruire,
Pour tout reconstruire.

Je l'aime à mourir.


Elle a gommé les chiffres

Des horloges du quartier,
Elle a fait de ma vie
Des cocottes en papier,
Des éclats de rires.

Elle a bâti des ponts

Entre nous et le ciel,
Et nous les traversons
A chaque fois qu'elle
Ne veut pas dormir,
Ne veut pas dormir.

Je l'aime à mourir.


Elle a dû faire toutes les guerres,

Pour être si forte aujourd'hui,
Elle a dû faire toutes les guerres,
De la vie, et l'amour aussi.

Elle vit de son mieux

Son rêve d'opaline,
Elle danse au milieu
des forêts qu'elle dessine,

Je l'aime à mourir.


Elle porte des rubans

qu'elle laisse s'envoler,
Elle me chante souvent
que j'ai tort d'essayer
De les retenir,
De les retenir,

Je l'aime à mourir.


Pour monter dans sa grotte

Cachée sous les toits,
Je dois clouer des notes
A ses sabots de bois,

Je l'aime à mourir.


Je dois juste m'asseoir,

Je ne dois pas parler,
Je ne dois rien vouloir,
Je dois juste essayer
De lui appartenir,
De lui appartenir,

Je l'aime à mourir.







Elle disait: "j'ai déjà trop marché,
mon cœur est déjà trop lourd de secrets,
trop lourd de peines".
Elle disait: "je ne continue plus,
ce qui m'attend, je l'ai déjà vécu,
c'est plus la peine".

Elle disait que vivre était cruel,

Elle ne croyait plus au soleil,
Ni aux silences des églises.
Même mes sourires lui faisaient peur,
C'était l'hiver dans le fond de son cœur.

Le vent n'a jamais été plus froid,

La pluie plus violente que ce soir-là,
Le soir de ses vingt ans,
Le soir où elle a éteint le feu,
Derrière la façade de ses yeux,
Dans un éclair blanc.

Elle a sûrement rejoint le ciel,

Elle brille à côté du soleil,
Comme les nouvelles églises.
Mais si depuis ce soir-là je pleure,
C'est qu'il fait froid
Dans le fond de mon cœur.


 
[a assinalar o humor francês que hoje sinto: "desde que sussurre em francês"]

03 fevereiro 2011

Dizer Portugal

Árvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a benção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
--- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

                        Florbela Espanca
 
 
 
Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que plas aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

                            Florbela Espanca
  
Portugal 

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.


Miguel Torga, in 'Diário X'


Para As Raparigas de Coimbra

Ó choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós:
És tal qual meu avôzinho,
Falta-te apenas a voz.

Minha capa vos acoite
Que é p'ra vos agazalhar:
Se por fóra é cor da noite,
Por dentro é cor do luar...

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do céu!

A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao sol:
Não cae, tolinho, a essa isca...
Só pondo uma flor no anzol!

A lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É d'uma certa farinha
Que não apanha bolor!

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua agoa?
Qu'é dos prantos que eu chorei?

A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim:
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.

- E só porque o mundo zomba
Que poes luto? Importa lá!
Antes te vistas de pomba...
- Pombas pretas tambem ha!

Therezinhas! Ursulinas!
Tardes de novena, adeus!
Os corações ás batinas
Que diriam? sabe-o Deus...

Teu coração é uma igreja:
N'uma eça dorme, alli,
Manoel, bemdito seja,
Que morreu d'amor por ti.

Manoel no Pio repoiza:
Todos os dias, lá vou
Ver se quer alguma coiza,
Perguntar como passou.

Agora, são tudo amores
A roda de mim, no Caes,
E, mal se apanham doutores,
Partem e não voltam mais...

Aos olhos da minha fronte
Vinde os cantaros encher:
Não ha, assim, segunda fonte
Com duas bicas a correr! 

Nossa Senhora faz meia
Com linha feita de luz:
O novello é a lua-cheia,
As meias são p'ra Jezus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons...

Ó fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailae, bailae, raparigas!
Batei, batei, corações!


António Nobre, in 'Só'
 

Viagem

É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...

Miguel Torga, in 'Diário XII'