28 julho 2011

Manuel António Pina (Prémio Camões, 2011)

It's all right, ma...

Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.


Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.


Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.


Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.


Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.


Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.


Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração, 
estou só a morrer em vão.



As vozes
 
A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós? 

Junto à Água

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.

Por isso os seus passos os levam

de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em

desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre altos prédios,

sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.


[Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio e Alvim, 2011]

3 comentários:

ex-instantes (suspensos) disse...

sim, está tudo bem - faz tanto tempo que assim é! estou a esvair-me, talvez, em desesperança, hoje menos ontem mais. este fluxo inquietante que me mantém vivo enquanto choca contra as veias (contra o espaço e contra a memória).

hipnose! ou regressão? - até aonde?
será possível remexer no passado, desviar o véu empoeirado para que o presente se torne mais iluminado e com sentido?

hypnosi(a)s , mesmo sem "as vozes"... sortiu, para já, algum efeito! - quem o poderá ter provocado para que pudesse por mim ser transformado?

não importa... importa que procuro "um sítio onde pousar a cabeça" [pois, sei que sempre] anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando [perscrutando], vagueia".

nu.instante@gmail.com

Kisa disse...

para quê mexer no passado? tudo o que acontece nas nossas vidas tem um propósito. Certo ou errado serviu para algo.
Erguer a cabeça e seguir em frente! Há sempre fontes onde beber Esperança, Fé, Sabedoria e Fortaleza...

Perseveremos!

ex-instantes (suspensos) disse...

creio nisso, querendo crer em mim mesmo que todo o passado não é mais do que um breve somatório de todos os presentes sucessivos, em que todos os mesmos presentes são inscritos precisamente nos seus devidos e respectivos instantes, e que não surgem como uma qualquer predestinação ou destino emanado.
perseveremos, sim!