11 janeiro 2009

Pedro Homem de Mello (1962-1968)

[Mont Saint Michel]



Os Poetas Ignorados (1962)


Condenação

Foi a mão sem anéis, antes da luva.

Sorriso breve, antes do beijo lento.

Foi a rosa, entreaberta antes da chuva.

Foi a brisa, encontrada antes do vento.

Foi a noite, a inocência na demora.

Foi a manhã – verde janela aberta:

Dois corpos lisos que se vão embora

Como a acordar a praia, ainda deserta.

Foi a paz, o silêncio antes do grito.

Foi a nudez, antes de ser brocado...

E foi, depois, o cânico interdito

E todo o meu poema recusado!

Fantasma

Sei de um jardim algures, na cidade,

Jardim onde anoitece, até de dia.

Jardim de sombra, sombra e claridade

Ardente e muda, musical e fria.

Na água dos tanques, enrugada ao vento,

Debruçam-se as estátuas, sempre sós.

E aquele abraço, misterioso e lento,

Não tem palavras, tem apenas voz.

Jardim deserto para toda a gente,

Satânico e lunar, quase irreal.

Quem ali vai é porque está doente

E busca alívio só no próprio mal.

Às vezes parto... e a fuga é um começo

De poesia e paz ou de virtude.

Mas, em voltando, logo reconheço

O quanto mente o amor que não ilude.

E embora eu ria ou pare, em plena rua

Como um burguês, como um burguês qualquer,

Ali, o meu destino continua...

Sem pai, sem mãe, sem filhos, sem mulher.

Brisa

Queimava-nos o sol.

Para abrigar-te

Quanto da minha vida eu não daria!

Vinha a poeira

A nós

De toda a parte.

Feira da beira-mar

Em pleno dia.

Mas o sorriso e o olhar

Vinham de França.

Frescos,

Modernos,

Como o teu vestido.

- Que dizes?

Perguntavas.

E uma dança

Nascia de eu falar ao teu ouvido...

Presença

Quero dizer-te os meus versos

Sempre e não de vez em quando.

Quer dizer-te os meus versos

Ou acordado, ou sonhando.

Quero dizer-te os meus versos,

Dizer-tos, de olhos cerrados:

Os olhos com que te vi!

Quero dizer-te os meus versos

Com todos esses pecados

Que não me apartam de ti.

Quero dizer-te os meus versos,

Fugindo a mil pesadelos,

Fazer da voz uma ilha!

(A minha água é o silêncio...)

Quero dizer-te os meus versos,

Para, depois, esquecê-los.

Quero dizer-te os meus versos

Na hora da despedida,

Quando o céu descer mais perto

E a glicínia der mais flor

E a noite for mais comprida...

Não julgues que te amo, não!

Quero, ao dizer-te os meus versos,

Mostrar-te, apenas, que existo,

(Sem fé? Sem glória? Sem arte?)

Quero dizer-te os meus versos,

Já que não posso esquecer-te...

E que não pude matar-te!

Horizonte

Este é o caminho que deve

Cobrir-se, apenas, de neve.

O caminho da carne silenciosa

Onde o verme esquece a rosa.

O caminho da paz.

O caminho do frio.

Este é o caminho intacto

Mas vazio...




Eu hei-de voltar um dia
(1966)

Prelúdio

Menino, menino triste,
Quem te odiar que te minta!
Acaso nunca sentiste
Que deixavas de ser triste
Em quebrando pela cinta?

Como contar-te segredos?
Quando saberás quem és?
Menino dos lábios quedos,
Com pedras em vez de dedos
Algemas em vez de pés!

Tolhe-te o medo talvez...
Envenena-te a incerteza?
Não ouves? Não ris? Não vês?
Chama que o vento desfez!
Por que não torná-la acesa?

Dá um passo, um passo, breve...
E tudo poderás ser:
Rosa ou peixe; fogo ou neve.
Quem canta paga a quem deve
E nunca chega a morrer!

Anoitecer

Um dia, pus o pé na juventude.
O ramo estava em flor. E a flor ilude...

Embriagou-me a luz, a cor e o aroma,
Como se tudo fosse uma redoma.

Olhei de frente para o meu espelho
E vi um cravo! O cravo era vermelho...

Depois, fiquei-me a olhar, a olhar, a olhar...
Ai! sem dar fé de que subia o mar!

E veio a idade – imóvel movimento –
- nuvem calada que me trouxe o vento...


Pátria

A Pátria não é apenas
Um corpo de bailador.
Não são duas mãos morenas
Nem mesmo um beijo de amor
Mais do que os livros que lemos,
Mais do que os amigos que temos,
Mas até que a mocidade,
A Pátria, realidade,
Vive em nós, porque vivemos.

Início

As aves só são aves quando sinto
Que a luz, o aroma e o ar de que preciso
É fugir de mim prório, enquanto minto
Sem que em ti poise nunca o meu sorriso...

Entretanto, emendo, olhando o teu cabelo,
Minha expressão, cruel quando tranquila.

Fruto vermelho!
Quem não quer colhê-lo?

Porta fechada...
Quem não quer abri-la?

Fronteira

Naquele banco sentado
(à sombra de que bandeira?)
Dir-se-ia, quase, um soldado
Servindo terra estrangeira.
Até nas cores do fato
Encarnado, azul e branco,
Havia como um retrato
(mas... de quem?) naquele banco.
Nuvem de oiro o seu cabelo!
Na boca tinha uma rosa...
Senti minha vida, ao vê-lo,
Cada vez mais misteriosa...
De olhos deitados ao chão,
Vagamente ele sorria...
E, antes que eu sonhasse, em vão,
Aquela imagem fugia!
Juventude, juventude,
Hoje alheia, outrora nossa!
Tudo o que, outrora, já pude
Fazer com que, hoje, não possa!

Carta a António

Onde estás? Onde estás se é que estás perto
E no meu peito continuas vivo?
Onde estás? Onde estás, se é que, liberto,
Podes-me ouvir, a mim que estou cativo?
Em sonho, lembro quando, lado a lado,
Éramos arcos firmes de aqueduto.
Onde estás? Onde estás, rosto velado
Sem lágrimas, sem rugas e sem luto?
Havia dois amigos: Pedro e António.
(Que todo o mundo saiba finalmente!)
E a morte? – Não há morte nem demónio,
Mas versos: os das almas frente a frente.
Frágil, baloiça a barca... frágeis remos!
E a mão de Deus? De súbito, amanhece...
Nós, os Poetas, morremos
Só quando alguém nos esquece.

Regresso

Fiz do meu corpo uma bandeira ao vento,

Enquanto ia tombando a embarcação.

Ó Himalaia do meu sofrimento!
Ó mar da China – mar da tentação!

Fiz do meu corpo uma bandeira ao vento



Enquanto ia tombando a embarcação...

E nunca os olhos dos adolescentes
Luziram mais ardentes!

Nunca em seus ombros o luar foi tanto
Para a minha alma e para o meu espanto...


Cabra-cega

Amizade? Cabra cega
Que tens por bandeira o riso!

A alma quando se entrega,
Ri o corpo, ainda indeciso...

Ri como quem oferece
Pérolas, rosas e neve.

Mas a alma não se atrave...
E tudo, por fim, esquece!

E uns pelos outros passamos,
Felizes ou infelizes,

Libertados pelos ramos,
Mas presos pelas raízes.


De Profundis

Como vela que se apaga
Um dia me apagarei.
Como os lábios de uma chaga
Se fecham, me fecharei.
Como fogo, já calado
Cuja cinza não ilude,
Fui pecado e sou pecado,
Fui virtude e sou virtude.
Como aquele coração
Pela noite defendido,
Como o vento e a solidão
Que me não sai do sentido,
Do lume passando à neve
(Como tinha de escrever...)
Meu corpo ficará leve
Antes de se desfazer.
Sem temer a eternidade
Muda e quieta, quieta e fria,
Dizei-me: - qual de vós há-de
Chegar-se a mim, nesse dia?
Se assim não for, vosso alarme
Desafio, frente a frente
Podeis despir-me e deitar-me
Diante de toda a gente!

Atentado

Rasguei o cabelo ao Sol.
Rasguei os ombros à Lua.
Rasguei os dedos aos rios.
Rasguei os lábios às rosas
E rasguei o ventre aos frutos
E a garganta aos rouxinóis.
Mas ninguém (nem mesmo tu!)
Viu que, em tudo, o que eu rasgava
Era a imagem do teu corpo
Branco,
Firme,
Intacto,
Nu.

Nós portugueses somos castos (1967)

Perseguição

Subitamente, no meu ombro, quedo,
Um pássaro deixou de ser promessa.
Anoitece... e o luar veio tão cedo!
E as roseiras floriram tão depressa!

Deixou de ser a música segredo
Apenas, onde, sensual, começa...
Anoitece... e o luar veio tão cedo!
E as roseiras floriram tão depressa!

Tenho medo da sombra porque é doce.
Tenho medo do mar como se fosse
Meu peito, a praia e a onda, a tua mão.

Tenho medo e esse medo me atordoa
E fujo à brisa que desabotoa
As pálpebras, fechadas sempre em vão!



As perguntas indiscretas
(1968)

Espera

No momento em que chegasse
Sei lá bem como seria!

De longe, traço-lhe a face,
Dando-lhe os olhos do dia...

Dou-lhe os cabelos do vento!
Dou-lhe os olhos das estrelas!

Dou-lhe as rosas com que tento
Embriagar-me, ao colhê-las...

Mas nem que, dentro de instantes,
Me desiluda a mentira,
Lembro alguém, maior que dantes,
Porque, sonhando, respira...

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