03 fevereiro 2011

Dizer Portugal

Árvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a benção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
--- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

                        Florbela Espanca
 
 
 
Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,
Ficaram meus brocados, que despi,
E as jóias que plas aias reparti
Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!
Foi por lá que as semeei e que as perdi...
Mostrem-se esse País onde eu nasci!
Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

Ó meu País de sonho e de ansiedade,
Não sei se esta quimera que me assombra,
É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

                            Florbela Espanca
  
Portugal 

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:
Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.


Miguel Torga, in 'Diário X'


Para As Raparigas de Coimbra

Ó choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós:
És tal qual meu avôzinho,
Falta-te apenas a voz.

Minha capa vos acoite
Que é p'ra vos agazalhar:
Se por fóra é cor da noite,
Por dentro é cor do luar...

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do céu!

A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao sol:
Não cae, tolinho, a essa isca...
Só pondo uma flor no anzol!

A lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É d'uma certa farinha
Que não apanha bolor!

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua agoa?
Qu'é dos prantos que eu chorei?

A cabra da velha Torre,
Meu amor, chama por mim:
Quando um estudante morre,
Os sinos chamam, assim.

- E só porque o mundo zomba
Que poes luto? Importa lá!
Antes te vistas de pomba...
- Pombas pretas tambem ha!

Therezinhas! Ursulinas!
Tardes de novena, adeus!
Os corações ás batinas
Que diriam? sabe-o Deus...

Teu coração é uma igreja:
N'uma eça dorme, alli,
Manoel, bemdito seja,
Que morreu d'amor por ti.

Manoel no Pio repoiza:
Todos os dias, lá vou
Ver se quer alguma coiza,
Perguntar como passou.

Agora, são tudo amores
A roda de mim, no Caes,
E, mal se apanham doutores,
Partem e não voltam mais...

Aos olhos da minha fronte
Vinde os cantaros encher:
Não ha, assim, segunda fonte
Com duas bicas a correr! 

Nossa Senhora faz meia
Com linha feita de luz:
O novello é a lua-cheia,
As meias são p'ra Jezus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons...

Ó fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailae, bailae, raparigas!
Batei, batei, corações!


António Nobre, in 'Só'
 

Viagem

É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
Universal
Que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
Que tudo alcança
Sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
De mar em mar,
Até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
Mais rico de amargura
Nas pausas da ventura
De me procurar...

Miguel Torga, in 'Diário XII'

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