13 fevereiro 2011

Devaneios do "bom selvagem"

 
 Hoje levei um murro no estômago, daqueles murros que nos lembram que o tempo muda, os rostos mudam, mas tudo continua exactamente na mesma: inquietante, insuficiente, injusto, cinzento.


Num domingo chuvoso, em que a disposição "obriga" ao isolamento, à reflexão, à solidão, sou arrancada a uma rotina confortável para me perder numa zona negra no meu mapa dos arredores de Lisboa. A estação de metro do Sr. Roubado nunca me viu mais perdida.


É numa sala intimista de um centro cultural improvável, que encontro uma amiga a quem desiludi dizendo-lhe que não iria ver a sua peça teatral que com tanta dedicação ajudou a construir. É nessa mesma sala que encontro essa amiga num ritual privado de limpeza, de brincadeira com o sabão, com a espuma; num ritual desconcertante talvez demorado, talvez simbólico, de certeza surpreendente pela fragilidade, pela rápida transformação da água límpida em água suja, do bloco de sabão em partículas, da sujidade em limpeza, da limpeza em sujidade... e é na sequência em que a terra macula a água, em que a água ensopa o papel que emergem os diálogos de "filosofia poética" de um optimista social que no fim da vida, se encontra perante o dilema que lhe nega a teoria: afinal o homem é mau e só na sua solidão se encontra, se reconcilia consigo... mas será que consegue morrer sem inquietação?

Ler Rousseau é sermos transportados para uma utopia filosofal, para um tratado de "dever ser" social que nos reduz à evidência de sermos selvagens a tentar sobreviver numa sociedade sem noção dos significados da triologia: Liberdade, Igualdade e Fraternidade... qualquer uma delas mais esquecida que a outra na sua essência, qualquer uma delas gasta pelo mainstream mediático, vazio de significados mas recheado de "parece bem".


Ver Rousseau, sentido com a intensidade imprimida neste projecto, é sentirmos que as palavras devem ser ditas, sentidas, interpretadas. É lembrarmo-nos que o que sentimos hoje, o que vivemos, já foi sentido, já foi vivido, já foi reflectido... e entretanto, nada foi feito...

Hoje levei um murro no estômago... e dói na alma!
 






«Impressões»
De Mário Trigo | a partir da obra "Os Devaneios do Caminhante" 



 Rousseau isola-se, espera a morte, e dedica os seus últimos dias ao exame minucioso da sua vida. Convida-nos para uma conversa serena, fazendo-nos penetrar na intimidade da sua alma doente. Dá-nos pensamentos, às vezes ampliados até à reflexão filosófica, respeitantes à sua visão da Moral, da Religião tal como ele a vive, revela-nos a sua aversão pela mentira, a sua ideia de Felicidade, seduz-nos com os seus pareceres sobre a solidão, não se esquece de nos testemunhar o seu amor ao próximo…

Vemos um Rousseau descontraído, mas também profundamente melancólico. Reconhece as suas fraquezas, o abandono dos filhos, a sua vontade absoluta de irreverência, que explica pela sua timidez e pela sua necessidade de Liberdade, e protesta veementemente contra o aparente fracasso da sua existência cuja responsabilidade atribui aos seus inimigos…


Encanta-nos com as imagens do seu passado vivido em locais paradisíacos, de que a Ilha de Saint-Pierre é um exemplo, enternece-nos com a lembrança do seu amor com Madame de Warens. Daqui emanam sentimentos luminosos que ele enquadra na sua filosofia de felicidade ligada à bondade original do homem: a felicidade de fazer o bem ao próximo, a felicidade usufruir do nosso ser de acordo com o que a Natureza quis…


Agora isolado dos homens, diz-se um caminhante solitário que procura os seus maiores prazeres no seio da Natureza, ao apaziguamento das suas paisagens variadas, das suas linhas harmoniosas, a perfeição botânica que toca a sua alma de artista e que o fazem ascender para Deus…


Este momento em que Rousseau nos recebe, a vida tal como a vive agora, longe da cultura parisiense, permite-lhe desprender-se dos seus anseios, dos seus desejos mais imediatos que o atiravam irreflectidamente para a acção, e revelar-nos o seu pensamento sistemático em proveito da sua esfera privada onde prevalece a autonomia do seu “eu”; a sua paixão por uma natureza em festa, os seus “devaneios”…


Morre inesperadamente na primavera de 1778, na companhia de Thérèse em Ermenonville e com sessenta e seis anos de idade. Morre assim, inesperadamente … o que acontece na nossa presença! E nós evocamos a Revolução que aconteceu em 1789… no mesmo país da Europa onde viveu Jean-Jacques Rousseau.



Com: Mário Trigo (Rousseau); Carla Dias (Madame Warens) e João Vicente (Louis de Saint-Juste)

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