28 setembro 2008

Pedro Homem de Mello (1947-1954)

Bodas Vermelhas (1947)


Canção Hindu

Nesta rua cansada que morreu,

A luz doira e perfuma as pedras velhas.

Na minha rua as mãos foram vermelhas

E hoje são brancas, pálidas como eu.

A água, ao nascer, enterra o sol poente...

Na igreja há ruínas, mas no altar há cravos.

E, para a sede, há vinho que nos mente

E que liberta os braços dos escravos.

Cegos, leprosos, mas que não tem fim.

(Sofriam mais, talvez, não sendo assim...).

Meu país sem futuro e sem presente!

Minha pátria de ausência e podridão!

Negros? Judeus? Cativos? – Tudo é gente.

Só quem ri dos Poetas é que não.


Miserere (1948)

Remorso

Lembro o seu vulto, esguio como espectro,

Naquela esquina, pálido, encostado!

Era um rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado...

De mãos nos bolsos e de olhar distante

- jeito de marinheiro ou de soldado...

Era um rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado.

Quem o visse, ao passar, talvez não desse

Pelo seu ar de príncipe, exilado

Na esquina, ali, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado.

Perguntei-lhe quem era e ele me disse:

Sou do Monte, Senhor! E seu criado...

Pobre rapaz da camisola verde

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!

Porque me assaltam turvos pensamentos?

Na minha frente estava um condenado?

- Vai-te! rapaz de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!

Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço,

Indiferente à raiva do meu brado.

E ali ficou, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado...

Ali ficou... e eu, cínico, deixei-o

Entregue à noite, aos homens, ao pecado...

Ali ficou, de camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado...

Soube eu depois, ali, que se perdera

Esse que, eu só, pudera ter salvado!

Ai! do rapaz da camisola verde,

Negra madeixa ao vento,

Boina maruja ao lado!


Fado

Eu tenho dois corações

Dentro e fora do meu lar.

Eu tenho dois corações.

Mas esses dois corações

Já me não podem bastar.

Quando a tristeza é tão triste,

Qual dos dois sofrerá mais?

O que é real não existe.

Eu tenho dois corações,

Ambos eles irreais.

Dois corações: o primeiro

Pertence à rua e ao pecado.

O segundo é cativeiro

De quem se fez caminheiro

Sem nunca ter caminhado!

Amor que se diga amor,

Não é homem nem mulher.

Engano? Seja o que for!

Como gostar duma flor

Sem gostar doutra qualquer?


Adeus (1951)

Aliança

Por tudo quanto sei, mas não sabia,

(Feliz de quem um dia ainda o souber!)

Por essa estrela branca em noite fria!

Anunciação, talvez, de poesia...

Por ti, minha mulher!

Por esse homem que sou, mas não era,

Vendo na morte a vida que vier!

Por teu sorriso em minha vida austera.

Anunciação, talvez de Primavera...

Por ti, minha mulher!

Pelo caminho humano a que vieste

Com fé no amor. – Seja o que Deus quiser!

Por certa fonte abrindo a rocha agreste...

Por esse filho loiro que me deste!

Por ti, minha mulher!

Pelo perdão que espalho aos quatro ventos,

De antemão cego ao mal que me trouxer

Despeitos surdos, pérfidos momentos;

Pelos teus passos, junto aos meus, mais lentos...

Por ti, minha mulher!

Nada mais digo. Nada. Que não posso!

Mas dirá mais do que eu quem não disser

Como eu?: - Avé-Maria... Pedre-Nosso...

Por tudo, quanto é meu (e que é tão nosso!)

Por ti, minha mulher!



Os amigos infelizes

Vendem-se os corpos? O meu é firme:

Rosto sereno, líquido olhar.

E há-de a miséria vir destruir-me?

Onde é que há oiro que o vou buscar?

Vendem-se as almas? A minha é pura.

Cercam-na rosas, fontes, luar...

Tenho alma e corpo – sexo e cintura...

Onde é que há oiro que o vou buscar?

Vendem-se versos – Com a voz triste

Compus poemas talvez sem par...

Quando cantamos, quem nos resiste?

Onde é que há oiro que o vou buscar?

Vendem-se as Pátrias? – Não vendo a minha.

Que é do meu nome? Que é do meu lar?

Ai! a miséria que se avizinha!

Onde é que há oiro que o vou buscar?

No entanto passas... Nada me dizes?

Talvez que eu pese em teu olhar...

Ó meus amigos sempre infelizes!

Ó meus amigos sempre infelizes,

Onde é que há oiro que o vou buscar?


Os amigos infelizes (1952)

Apelo

Quem quer que sejas, vem a mim apenas

De noite, quando as rosas adormecerem!

Vem quando a treva alonga as mãos morenas

E quando as aves de voar se esquecem.

Vem a mim quando, até nos pesadelos,

O amor tenha a beleza da mentira.

Vem quando o vento acorda em meus cabelos,

Como em olhagem que, ávida, respira...

Vem como a sombra, quando a estrada é nua,

Num risco de asa, vem, serenamente!

Como as estrlas, quando não há Lua

Ou como os peixes, quando não há gente...


Francisco

Trazia-nos o mar quando cantava...

Era seu canto a própria maresia!

Contudo, em sua boca, uma flor brava –

Rosa de carne – à terra, ainda o prendia.

Nos seus dedos, as sombras das gaivotas

Poisavam sem poisar...

Mastro perdido! Inverosímeis rotas

Que nunca mais hão-de recomeçar!

Seria frágil? Sim, porque era forte.

Seria bom? Não sei... mas era puro.

Tinha a beleza que anuncia a morte

Do lírio prematuro.

Quadril enxuto. E o peito? – Asas redondas

Com que se voa mais que se respira!

Corpo de efebo no cristal das ondas.

Em vez de vermes, algas de safira...

Sombra

Aquela estrela apagada

Que tantas vezes luziu,

Ó meu amor não foi nada!

Foi um de nós que partiu...

E aquela flor? Ai! da flor!

Quem a pisou? Tu ou eu?

Não foi nada, ó meu amor!

- Foi um de nós que morreu...

E aquela folha caída

Que logo o vento levou?

Ó meu amor! foi a vida.

- Foi um de nós que passou...


Claustro

Como se a noite fosse clara,

Como se o lume fosse frio,

Procuro ler em cada rio

Aquela curva que separa...

Como se um pássaro pudesse

Levar consigo a minha imagem,

Na inconfidência da folhagem

Procuro o voo duma prece.

Como se a morte fosse o muro

E a vida apenas a parede,

Procuro ver, por trás da sede,

A fome que ainda não procuro.

Como se, negra, uma bandeira

Me trespassasse o coração,

Procuro, em toda a escuridão,

A minha Pátria verdadeira.

Como se o dia fosse de água

E respirasse como um peixe,

Procuro a fonte que me deixe

Beber, sozinho, a minha mágoa...

Espera


Quando virás na vaga proibida,

Com maresia e vento ao abandono,

Pôr nos meus lábios um sinal de vida

Onde haja apenas pétalas e sono?

Com teu olhar de nuvem ou cipreste,

Com uma rosa oculta por florir,

Se te chamei e nunca mais vieste

Quando virás sem que eu te mande vir?

Quando, quebrando todos os segredos,

Na aragem que a poesia deixa nua,

Virás deitar-te um pouco nos meus dedos

Como o Sol, como a Terra, como a Lua?

E por que a minha boca te sorrira

Tentando abrir uma invisível grade,

Quando virás, sem medo e sem mentira,

Dar a meu corpo a sua liberdade?


Os amigos infelizes

Andamos nus, apenas revestidos

Da música inocente dos sentidos.

Como nuvens ou pássaros passamos

Entre o arvoredo, sem tocar nos ramos.

No entanto, em nós, o canto é quase mudo.

Nada pedimos. Recusamos tudo.

Nunca para vingar as próprias dores

Tiramos sangue ao mundo ou vida às flores.

E a noite chega! Ao longe, morre o dia...

A Pátria é o Céu. E o Céu, a Poesia...

E há mãos que vêm poisar em nossos ombros

E somos o silêncio dos escombros.

Ó meus irmãos! em todos os países,

Rezai pelos amigos infelizes!


O rapaz da camisola verde (1954)


Solidão

Ó solidão! À noite, quando, estranho,

Vagueio sem destino, pelas ruas,

O mar todo é de pedra... e continuas.

Todo o vento é poeira... e continuas.

A Lua, fria, pesa... e continuas.

Uma hora passa e outra... e continuas.

Nas minhas mãos vazias continuas,

No meu sexo indomável continuas,

Na minha branca insónia continuas,

Paro como quem foge. E continuas.

Chamo por toda a gente. E continuas.

Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.

Invento um verso... e rasgo-o. E continuas.

Eterna, continuas...

Mas sei por fim que sou do teu tamanho!



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