Bodas Vermelhas (1947)
Canção Hindu
Nesta rua cansada que morreu,
A luz doira e perfuma as pedras velhas.
Na minha rua as mãos foram vermelhas
E hoje são brancas, pálidas como eu.
A água, ao nascer, enterra o sol poente...
Na igreja há ruínas, mas no altar há cravos.
E, para a sede, há vinho que nos mente
E que liberta os braços dos escravos.
Cegos, leprosos, mas que não tem fim.
(Sofriam mais, talvez, não sendo assim...).
Meu país sem futuro e sem presente!
Minha pátria de ausência e podridão!
Negros? Judeus? Cativos? – Tudo é gente.
Só quem ri dos Poetas é que não.
Miserere (1948)
Remorso
Lembro o seu vulto, esguio como espectro,
Naquela esquina, pálido, encostado!
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado...
De mãos nos bolsos e de olhar distante
- jeito de marinheiro ou de soldado...
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Quem o visse, ao passar, talvez não desse
Pelo seu ar de príncipe, exilado
Na esquina, ali, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Perguntei-lhe quem era e ele me disse:
Sou do Monte, Senhor! E seu criado...
Pobre rapaz da camisola verde
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado?
- Vai-te! rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Ouvindo-me, quedou-se, altivo, o moço,
Indiferente à raiva do meu brado.
E ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado...
Ali ficou... e eu, cínico, deixei-o
Entregue à noite, aos homens, ao pecado...
Ali ficou, de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado...
Soube eu depois, ali, que se perdera
Esse que, eu só, pudera ter salvado!
Ai! do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado!
Fado
Eu tenho dois corações
Dentro e fora do meu lar.
Eu tenho dois corações.
Mas esses dois corações
Já me não podem bastar.
Quando a tristeza é tão triste,
Qual dos dois sofrerá mais?
O que é real não existe.
Eu tenho dois corações,
Ambos eles irreais.
Dois corações: o primeiro
Pertence à rua e ao pecado.
O segundo é cativeiro
De quem se fez caminheiro
Sem nunca ter caminhado!
Amor que se diga amor,
Não é homem nem mulher.
Engano? Seja o que for!
Como gostar duma flor
Sem gostar doutra qualquer?
Adeus (1951)
Aliança
Por tudo quanto sei, mas não sabia,
(Feliz de quem um dia ainda o souber!)
Por essa estrela branca em noite fria!
Anunciação, talvez, de poesia...
Por ti, minha mulher!
Por esse homem que sou, mas não era,
Vendo na morte a vida que vier!
Por teu sorriso em minha vida austera.
Anunciação, talvez de Primavera...
Por ti, minha mulher!
Pelo caminho humano a que vieste
Com fé no amor. – Seja o que Deus quiser!
Por certa fonte abrindo a rocha agreste...
Por esse filho loiro que me deste!
Por ti, minha mulher!
Pelo perdão que espalho aos quatro ventos,
De antemão cego ao mal que me trouxer
Despeitos surdos, pérfidos momentos;
Pelos teus passos, junto aos meus, mais lentos...
Por ti, minha mulher!
Nada mais digo. Nada. Que não posso!
Mas dirá mais do que eu quem não disser
Como eu?: - Avé-Maria... Pedre-Nosso...
Por tudo, quanto é meu (e que é tão nosso!)
Por ti, minha mulher!
Os amigos infelizes
Vendem-se os corpos? O meu é firme:
Rosto sereno, líquido olhar.
E há-de a miséria vir destruir-me?
Onde é que há oiro que o vou buscar?
Vendem-se as almas? A minha é pura.
Cercam-na rosas, fontes, luar...
Tenho alma e corpo – sexo e cintura...
Onde é que há oiro que o vou buscar?
Vendem-se versos – Com a voz triste
Compus poemas talvez sem par...
Quando cantamos, quem nos resiste?
Onde é que há oiro que o vou buscar?
Vendem-se as Pátrias? – Não vendo a minha.
Que é do meu nome? Que é do meu lar?
Ai! a miséria que se avizinha!
Onde é que há oiro que o vou buscar?
No entanto passas... Nada me dizes?
Talvez que eu pese em teu olhar...
Ó meus amigos sempre infelizes!
Ó meus amigos sempre infelizes,
Onde é que há oiro que o vou buscar?
Os amigos infelizes (1952)
Apelo
Quem quer que sejas, vem a mim apenas
De noite, quando as rosas adormecerem!
Vem quando a treva alonga as mãos morenas
E quando as aves de voar se esquecem.
Vem a mim quando, até nos pesadelos,
O amor tenha a beleza da mentira.
Vem quando o vento acorda em meus cabelos,
Como em olhagem que, ávida, respira...
Vem como a sombra, quando a estrada é nua,
Num risco de asa, vem, serenamente!
Como as estrlas, quando não há Lua
Ou como os peixes, quando não há gente...
Francisco
Trazia-nos o mar quando cantava...
Era seu canto a própria maresia!
Contudo, em sua boca, uma flor brava –
Rosa de carne – à terra, ainda o prendia.
Nos seus dedos, as sombras das gaivotas
Poisavam sem poisar...
Mastro perdido! Inverosímeis rotas
Que nunca mais hão-de recomeçar!
Seria frágil? Sim, porque era forte.
Seria bom? Não sei... mas era puro.
Tinha a beleza que anuncia a morte
Do lírio prematuro.
Quadril enxuto. E o peito? – Asas redondas
Com que se voa mais que se respira!
Corpo de efebo no cristal das ondas.
Em vez de vermes, algas de safira...
Sombra
Aquela estrela apagada
Que tantas vezes luziu,
Ó meu amor não foi nada!
Foi um de nós que partiu...
E aquela flor? Ai! da flor!
Quem a pisou? Tu ou eu?
Não foi nada, ó meu amor!
- Foi um de nós que morreu...
E aquela folha caída
Que logo o vento levou?
Ó meu amor! foi a vida.
- Foi um de nós que passou...
Claustro
Como se a noite fosse clara,
Como se o lume fosse frio,
Procuro ler em cada rio
Aquela curva que separa...
Como se um pássaro pudesse
Levar consigo a minha imagem,
Na inconfidência da folhagem
Procuro o voo duma prece.
Como se a morte fosse o muro
E a vida apenas a parede,
Procuro ver, por trás da sede,
A fome que ainda não procuro.
Como se, negra, uma bandeira
Me trespassasse o coração,
Procuro, em toda a escuridão,
A minha Pátria verdadeira.
Como se o dia fosse de água
E respirasse como um peixe,
Procuro a fonte que me deixe
Beber, sozinho, a minha mágoa...
Espera
Quando virás na vaga proibida,
Com maresia e vento ao abandono,
Pôr nos meus lábios um sinal de vida
Onde haja apenas pétalas e sono?
Com teu olhar de nuvem ou cipreste,
Com uma rosa oculta por florir,
Se te chamei e nunca mais vieste
Quando virás sem que eu te mande vir?
Quando, quebrando todos os segredos,
Na aragem que a poesia deixa nua,
Virás deitar-te um pouco nos meus dedos
Como o Sol, como a Terra, como a Lua?
E por que a minha boca te sorrira
Tentando abrir uma invisível grade,
Quando virás, sem medo e sem mentira,
Dar a meu corpo a sua liberdade?
Os amigos infelizes
Andamos nus, apenas revestidos
Da música inocente dos sentidos.
Como nuvens ou pássaros passamos
Entre o arvoredo, sem tocar nos ramos.
No entanto, em nós, o canto é quase mudo.
Nada pedimos. Recusamos tudo.
Nunca para vingar as próprias dores
Tiramos sangue ao mundo ou vida às flores.
E a noite chega! Ao longe, morre o dia...
A Pátria é o Céu. E o Céu, a Poesia...
E há mãos que vêm poisar em nossos ombros
E somos o silêncio dos escombros.
Ó meus irmãos! em todos os países,
Rezai pelos amigos infelizes!
O rapaz da camisola verde (1954)
Solidão
Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra... e continuas.
Todo o vento é poeira... e continuas.
A Lua, fria, pesa... e continuas.
Uma hora passa e outra... e continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insónia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso... e rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas...
Mas sei por fim que sou do teu tamanho!
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