13 setembro 2008

Pedro Homem de Mello (1944)




Fui pedir um sonho ao jardim dos mortos

Fui pedir um sonho ao jardim dos mortos
Quis pedi-los, aos vivos. Disseram-me que não.
Os mortos não sabem, lá onde é que estão,
Que neles se enfeitam os meus braços tortos.

Os mortos dormiam... Passei-lhes ao lado.
Arranquei-lhes tudo, tudo quanto pude;
Páginas intactas – um livro fechado
Em cada ataúde.

Ai as pedras raras! As pedras preciosas!
Relâmpagos verdes por baixo do mar!
A sombra, o perfume dos cravos, das rosas
Que os dedos, já hirtos, teimavam guardar!

Minha alma é um cadáver pálido, desfeito.
As suas ossadas
Quem sabe onde estão?
Trago as mãos cruzadas...
Pesam-me no peito.
Quem sabe se a lama onde hoje me deito
Dará flor aos vivos que dizem que não?


«Mea culpa»

Fugindo à voz do amor, fugindo à luta,
A lágrima que nasce em mim nem rola
Fica-me a face branca, branca e enxuta;
Cruzei os braços recusando a esmola.
Por astúcia esquivei-me a qualquer crime.
Com gestos hábeis, cínicos de bruxo.
Desconheço o remorso que redime.
Dei-me à virtude fria como a um luxo.


Escuridão


Negra, sim, como os cravos são vermelhos,
Negra, sim, como a neve é branca e fria,
Negra como as mãos postas e os joelhos
Assim é negra a noite do meu dia.
Negra como o que penso e o que não dizes!
(Lembro não sei que pássaro ao poente...)
Ai! a fronteira em todos os países
Ai! um só fruto proibido e ardente!
Negra como a ignorância e a realeza
Dos braços que se cruzam com desdém.
Negra como a raiz oculta e presa
Como o nome (tão meu) de Pedro Sem!
Negra como os vestígios maus do sangue
E o destino de toda a Poesia...
Negra como esse corpo, doce e langue,
Que da sua beleza não sabia...
Assim é negra a noite do meu dia,
Negra como as mãos postas e os joelhos,
Negra, sim, como os cravos são vermelhos,
Negra, sim, como a neve é branca e fria...


Presságio

Ela há-de vir como um punhal silente
Cravar-se para sempre no meu peito.
Podem os euses rir na hora presente
Que ela há-de vir como um punhal direito.
Cubram-me lutos, sordidez e chagas!
Também rubis das minhas mãos morenas!
Rasguem-se os véus do leito em que me afagas!
- A coroa de ferro é cinza apenas...
E ela há-de vir a lepra que receio
E cuja sombra, aos poucos me consome.
Ela há-de vir, maior que a sede e a fome,
Ela há-de vir, a dor que ainda não veio.


Príncipe Perfeito


Aquele estranho soldado
Nunca a farda ele a rompeu
Aquele estranho soldado,
Cujo exército é parado;
Sou eu.

Aquela estrela cadente,
Depois de cair da altura,
Quem se lembra que ela ardeu?
Aquela estrela cadente
Sou eu.

Não foi sobre mar revolto,
Foi sobre pálido lago
Que certa nau se perdeu...
Aquela barca perdida
Sou eu.

Sei dum livro ainda fechado.
Porque é que ninguém o leu?
- Era uma vez um Poeta...
Aquele conto ignorado
Sou eu.

Nem os palmos de chão tenho
Que o destino aos mortos deu!
Não tenho um palmo de terra!
Não tenho nada. O Poeta
Sou eu.

Ó Pássaro de Pedra!
As tuas horas longas são as minhas...
À nossa frente os Oceanos falam.
Mas nós emudecemos.

À nossa beira uns choram: outros riem.
Mas nós ficamos frios e parados.
Logo, ao cair da noite,
As plantas dormem...
Os corpos vão juntar-se
Livremente.
Esses versos que o dias encarcerou!...

E eu
E tu
Morremos de cansaço,
De olhos postos no céu dos que voaram!

Ouviu-se ao longe a música da vida
Ao longe ouvi-a, em meu caixão deitado...
Não me acordou a música da vida!...
Dormi, sonhando, em meu caixão deitado,
Cavalos brancos e selins de prata,
Carroções de oiro, de oiro mas vazios,
Histórias velhas, velhas mas sem data,
Tudo como eu. Lábios turbados, frios...
Ninguém calcou a minha sepultura!
A mim chegou só o eco de outros passos!
Canção morta? Afinal, canção futura.
Sono de membros alquebrados, lassos...
Condenação! Dedo que me detém!
Ficou um sopro sobre o meu poisado...
Anjos? Demónios? Não me viu ninguém.
Vivi dormindo em meu caixão fechado.

O ritmo... A cor... O aroma... Essas nascentes
Deviam-me bastar!
Mas não! Tenho pulmões. Preciso de ar.
Trago entreaberta a boca e tenho dentes...
E o sonho? E o amor? As vibrações secretas
Deviam dar-me o alento de viver!

De que lama são feitos os Poetas
Que buscam só prazer?

Sei que há sombras e há fundos matagais...
Corpo trigueiro e forte! Por que esperas
Para saciar o instinto? Nada mais
Do que a fome dá pão e alma às feras.

Devia ser um beijo
E foi só chaga aberta!
Devia ser harpejo.
E fo nota deserta!
Ó formosura acesa!
Que é dos voos eternos?
- Caminhos de beleza
Desceram aos infernos...
Deviam ser caminhos
Onde a nossa alma fosse
Envolta em seus arminhos.
Que é da beleza doce?
Deviam ser mil rosas,
Todas resplandecentes!
Deviam ser mil rosas,
Com místicas sementes!
Deviam ser mil rosas.
E foram mil serpentes:
- Volúpias monstruosas,
Contactos decadentes...

A nascente dorida dos meus rios
Não se vê.
Meus versos, escrevi-os
Para quê?

Sofri meus pensamentos e cantei-os,
(Não foi só por cantar!)
Neles ficaam linhas de alvos seios
E tintas apagadas de luar...

Mas a nascente viva dos meus rios
Não se vê.
Meus versos, escrevi-os
Para quê?

Alguém ao lê-los não sentiu a prece?
Ah! minha rubra lágrima perdida!
Segredo? Uma vez dito, logo esquece...
Bailado? Enquanto o danço é que tem vida!

Pediram-me a alma. Dei-a.
Chamaram-lhe bruma!
Pediram-me sangue. Dei-o.
Chamaram-lhe espuma.

E atordoou-me o toque do clarim
Do que era loiro, ardente e amanheceu.
Nabucodonosor! Um nome assim,
Podia ser o meu.

As mãos do rei podiam ser as minhas.
A sua raça continua em mim.
Petrificaram-me as rainhas
À mesa do festim...

Ó danças
Por florir!
Mesopotâmia! Índia! Roma! Alcácer Quibir!
Prometeram-me lírios, cordeiros, avees mansas...

Fora príncipe cego o meu único irmão!
Minha sala de baile uma rocha bem quieta!

Os homens não me viram e nunca me verão,
A mim, que sou Poeta.

in Príncipe Perfeito (1944)

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