19 dezembro 2007

Mulher em Branco




Laura, grávida, casa com Paulo. Anos mais tarde separam-se, e numa tarde Paulo perde Afonso o filho, durante o passeio. Telefona a Laura que fica em choque e perde a memória, assim começa este romance.
Através da história de Laura e Paulo, conhecemos Dulce (lésbica) irmã de Paulo, e Sérgio (paraplégico e homossexual) irmão de Laura.
Conhecemos ainda os protectores pais de Laura, e a violência do Pai de Paulo, que antagoniza com a submissão da Mãe que morre.









Uma criança desaparece. Estava à guarda do pai. O choque da notícia atira a mãe para um abismo de amnésia. Sem memória, é incapaz de chorar um filho que não sabe que tem. Como podemos continuar a viver se caminhamos vazios. E há um homem que arranja uma amante enquanto visita a mulher no hospital. Ladrões que roubam cinzas de uma morta. Há as maldades desumanas do amor, um sopro pérfido que o diabo sussurra aos ouvidos. Em fundo, a irracional violência do divórcio. A bestialidade das palavras que atiramos uns aos outros como pedras. Uma mulher que espera ainda e sempre, à janela. Porque o coração é um bicho e não ouve. E uma pergunta a que não se ousa responder: Para onde vão os amores que foram um dia?




uma escrita crua, entrecortada por pensamentos e divagações pragmáticas e sarcásticas, de quem vê a vida como fatalidade incontornável, na óptica do «pode sempre piorar» ou do «não há nada a fazer», «é assim». um retrato do indizível, arriscado para uma figura pública que desperta paixões e ódios difíceis de esquecer fora do contexto. Tardei em ler pelo preconceito: não gosto da imagem, nem da postura de arrogância, mas depois lê-se e esquece-se a imagem, constrói-se outra... e ama-se a escrita, os retratos secos, e cria-se a empatia... e é mais!



«sonâmbula
sonâmbula
atirar-me para a cama e dormir a noite toda e a manhã toda e verificar no relógio que já é de tarde e dormir a tarde toda de seguida, sem fraldas, toalhetes húmidos, caixinhas de música de embalar que invariavelmente só me adormecem a mim e ao invés despertam no bebé sinfonias de choro requebrado, cai-me a cabeça sobre a roupinha dele na cadeira, surda
Ando mas não vejo
Acordo mas não estou»

«porque há um muro, um paredão grosso, intransponível, denso, que nos afasta, melhor dizendo, que se interpõe entre nós, porque duas pessoas serão sempre isso, duas pessoas, e em cada uma um vulcão de diferentes erupções, que palavra nenhuma traduz, um fogo ou um lado tranquilo, que não se consegue simplesmente traduzir ao dizer
- tenho aqui um fogo
- há hoje em mim um lago tranquilo
Porque duas pessoas são duas pessoas, não uma como a poesia do romance que te engana, não chegas nunca lá, às cavernas onde o teu coração ensaia magnitudes várias, ainda que durmam juntos, que comam juntos, que deêm as mãos, que viajem, que jurem nunca se separar e de facto não passem um minuto um sem o outro, por mais que se olhem, em silêncio, compenetrados, se olhem concentrados à espera de descobrir um fogo, uma mansa bacia de um rio preguiçoso, resta-te acreditar
Ou não»

«dizer-te as palavras certas mas tão pequeninas para que entendas, para que entendas, não apenas ouças, que se pode não ser capaz do que sabemos ser o correcto, e iríamos por aqui fora, com palavras para trás e para a frente, cada um com o seu saco de onde iríamos tirando à vez o que se segue
(…)
esquece as palavras. São doutro reino. Um coração não as decifra. Bate mais depressa ou mais devagar. É um bicho. E não ouve.»

«como pode acontecer-nos uma vida e caminharmos vazios»

«quando o coração dos outros se apaga não há nada que possamos fazer»

«tranquilidade de não pertencer. Nenhuma expectativa, nenhuma angústia.»

«sou inteiro. sou mil pedaços. ruminante e ubíquo.»

«a lutar, a lutar ainda, incapaz de aceitar que se perde sempre contra um coração, um coração que é um bicho, ninguém arranja nome para isto, que nome dar a isto, o dragão, a besta, o falso profeta, que é isto que se passa no coração da gente, onde a verdade e a mentira se agridem até à morte»



[Rodrigo Guedes de Carvalho - Mulher em Branco. Publicações Dom Quixote. 2006]

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