Grande, grande era a cidade... (1955)
Noite
Em lábio indecifrável e olhar baço!
Ó noite de água e sombra, vento e lume,
Tentadora e subtil como um regaço!
Ó hálito do medo! Ó flor do engano,
Irmã de quanto lobo houver faminto!
Clandestino punhal com que o cigano
Descalça a luva e desaperta o cinto...
Ó Pátria desonesta, incestuosa!
Ó prontidão do mal a cada aceno!
Suspiro... beijo... pétala de rosa...
Amor? Em vez de amor digam veneno.
Digam castigo ou crime. Não importa.
Mas digam noite na cidade morta!
Tédio
Já perdi a conta aos meses.
Dezembro? Janeiro? Maio?
Batem-me à porta, por vezes,
Não saio. Finjo que saio.
Mas regresso à velha mesa,
Por vício, não por enlevo.
Filho da própria incerteza,
Escrevo. Finjo que escrevo...
Que dia é hoje? Sei lá!
O sinal da cruz diz: mais.
E uma hora quando é má
Diz que as outras são iguais.
Nazareno
Velho, um marujo sonha... Onde ele for
Hão-de arrastar-se as cordas da viola.
Outrora, jovem, mendigava amor
E, sendo pobre, recusava a esmola.
A quem, de noite, lhe pedisse lume,
Com um sorriso ingénuo respondia...
E logo a rua má tinha perfume
E em todos os relógios era dia!
Hoje vagueia no jardim deserto.
Somente as ondas vêm bater no cais.
E a sua enxerga, sórdida, já perto,
Revela manchas que não saem mais.
Nenhuma estrela rasga a escuridão
Nenhuma prece oculta nos inspira.
Nem mesmo a glória de esconder em vão
Seus olhos, cor de pérola e safira.
Intimidade
Hás-de voltar mais loira que as espigas
Ó musa bela do meu sonho ledo!
Parávamos... cantavas-me cantigas.
Dizias-me ao partir, chorando: - É cedo.
Hás-de voltar! E a noite? E a poesia?
E tudo quanto a idade leva embora?
Talvez que um anjo, súbito, sorria
E nos conceda o olhar que se demora...
Hás-de voltar! Ao longe era a neblina.
Carícia de onde pela praia absorta...
- mas, para já, corramos a cortina!
Fechemos, meu amor, aquela porta...
Fonte
Meu amor diz-me o teu nome
- nome que desaprendi...
Diz-me apenas o teu nome.
Nada mais quero de ti.
Diz-me apenas se em teus olhos
Minhas lágrimas não vi,
Se era noite nos teus olhos,
Só por que passei por ti!
Depois, calaram-se os versos
- versos que desaprendi...
E nasceram outros versos
Que me afastaram de ti.
Meu amor, diz-me o teu nome.
Alumia o meu ouvido.
Diz-me apenas o teu nome,
Antes que eu rasgue estes versos,
Como quem rasga um vestido!
Apartamento
Lembrava seu corpo, ao longe,
Um navio naufragado...
Disse-lhe adeus. Era tarde.
Já vnha a sombra a meu lado!
Como quem, morta a esperança,
Entra em silêncio no mar,
Vi seu corpo entrar na treva...
Quis-me deitar a afogar!
Levei os lábios aos dedos.
Caiu-me a noite no peito.
Disse-lhe adeus. Era tarde.
Estava o sonho desfeito!
Tudo era noite e segredo.
Noite de pedra pesada.
Disse-lhe adeus. Era tarde.
E não lhe disse mais nada.
Companheiro
Negaram-lhe a água.
Negaram-lhe o vinho,
As rosas, o leite...
E se encontrou cama
Onde ainde se deite
É porque a beleza
É feita de mágoa.
Meu único amigo,
Meu único irmão,
Embrulhou-o a Lua
Em seu cobertor...
Meu único amigo,
Meu único irmão!
Não teve jazigo,
Não teve caixão,
Teve uma guitarra:
O meu coração.
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