02 outubro 2008

Pedro Homem de Mello (1955)

Grande, grande era a cidade... (1955)

Noite

Ó noite, escuridão que me resume

Em lábio indecifrável e olhar baço!

Ó noite de água e sombra, vento e lume,

Tentadora e subtil como um regaço!

Ó hálito do medo! Ó flor do engano,

Irmã de quanto lobo houver faminto!

Clandestino punhal com que o cigano

Descalça a luva e desaperta o cinto...

Ó Pátria desonesta, incestuosa!

Ó prontidão do mal a cada aceno!

Suspiro... beijo... pétala de rosa...

Amor? Em vez de amor digam veneno.

Digam castigo ou crime. Não importa.

Mas digam noite na cidade morta!

Tédio

Já perdi a conta aos meses.

Dezembro? Janeiro? Maio?

Batem-me à porta, por vezes,

Não saio. Finjo que saio.

Mas regresso à velha mesa,

Por vício, não por enlevo.

Filho da própria incerteza,

Escrevo. Finjo que escrevo...

Que dia é hoje? Sei lá!

O sinal da cruz diz: mais.

E uma hora quando é má

Diz que as outras são iguais.

Nazareno

Velho, um marujo sonha... Onde ele for

Hão-de arrastar-se as cordas da viola.

Outrora, jovem, mendigava amor

E, sendo pobre, recusava a esmola.

A quem, de noite, lhe pedisse lume,

Com um sorriso ingénuo respondia...

E logo a rua má tinha perfume

E em todos os relógios era dia!

Hoje vagueia no jardim deserto.

Somente as ondas vêm bater no cais.

E a sua enxerga, sórdida, já perto,

Revela manchas que não saem mais.

Nenhuma estrela rasga a escuridão

Nenhuma prece oculta nos inspira.

Nem mesmo a glória de esconder em vão

Seus olhos, cor de pérola e safira.

Intimidade

Hás-de voltar mais loira que as espigas

Ó musa bela do meu sonho ledo!

Parávamos... cantavas-me cantigas.

Dizias-me ao partir, chorando: - É cedo.

Hás-de voltar! E a noite? E a poesia?

E tudo quanto a idade leva embora?

Talvez que um anjo, súbito, sorria

E nos conceda o olhar que se demora...

Hás-de voltar! Ao longe era a neblina.

Carícia de onde pela praia absorta...

- mas, para já, corramos a cortina!

Fechemos, meu amor, aquela porta...


Fonte

Meu amor diz-me o teu nome

- nome que desaprendi...

Diz-me apenas o teu nome.

Nada mais quero de ti.

Diz-me apenas se em teus olhos

Minhas lágrimas não vi,

Se era noite nos teus olhos,

Só por que passei por ti!

Depois, calaram-se os versos

- versos que desaprendi...

E nasceram outros versos

Que me afastaram de ti.

Meu amor, diz-me o teu nome.

Alumia o meu ouvido.

Diz-me apenas o teu nome,

Antes que eu rasgue estes versos,

Como quem rasga um vestido!

Apartamento

Lembrava seu corpo, ao longe,

Um navio naufragado...

Disse-lhe adeus. Era tarde.

Já vnha a sombra a meu lado!

Como quem, morta a esperança,

Entra em silêncio no mar,

Vi seu corpo entrar na treva...

Quis-me deitar a afogar!

Levei os lábios aos dedos.

Caiu-me a noite no peito.

Disse-lhe adeus. Era tarde.

Estava o sonho desfeito!

Tudo era noite e segredo.

Noite de pedra pesada.

Disse-lhe adeus. Era tarde.

E não lhe disse mais nada.


Companheiro

Negaram-lhe a luz.

Negaram-lhe a água.

Negaram-lhe o vinho,

As rosas, o leite...

E se encontrou cama

Onde ainde se deite

É porque a beleza

É feita de mágoa.

Meu único amigo,

Meu único irmão,

Embrulhou-o a Lua

Em seu cobertor...

Meu único amigo,

Meu único irmão!

Não teve jazigo,

Não teve caixão,

Teve uma guitarra:

O meu coração.



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